01 fevereiro, 2006

Tecle M se precisar Matar

Tem coisas que a gente aprende na prática e na convivência - uma delas é simples: ética é limite. Sim, aquilo que definimos como um conjunto de normas comportamentais e profissionais que rege a vida civilizada e em sociedade, na verdade, pode ser definido apenas como "limite". Ou, na versão joselito das coisas, "noção". Na verdade, ética e moral são duas coisas diferentes com a mesma definição - "limite". Quem joga bebê dentro de lagoa não tem ética. Quem pratica pedofilia com bebê na lagoa não tem moral. Quem se joga junto com o bebê na lagoa, pelado, não tem ética e nem moral. Esse deslizamento de texto foi apenas uma tentativa de começar o assunto. Se funcionou, eu não sei. Só sei que devo ter sido o primeiro a faltar com a ética suficiente a ponto de fazer piadinha com o fato absurdo a que assistimos, aquele já batizado de "Iara da Pampulha". Uma episódio que tende a, em centenas de anos, entrar para nossa mitologia, assim como o torturado Negrinho do Pastoreio e o rejeitado Caipora. O bebê da Pampulha um dia terá morrido mesmo, e estará assombrando por lá mesmo existindo os netos da menina salva heroicamente pelos bombeiros. Acompanhar o drama real do bebê da mãe Simone e, no mesmo fim de semana, assistir ao espetacular Munich, do Spielberg (mas que não tem a menor pinta de filme do Spielberg), é o caminho mais curto para levar o sujeito a pensar sobre o ato de matar. Não o "difícil" ato de matar, como em Raymond Chandler, mas no ato corriqueiro, banalizado. Aquele mesmo, estilo Zé Pequeno em Cidade de Deus, quando ele dá um tiro na cabeça do comparsa porque ele está falando demais. O ato já tinha me vindo à mente uma semana antes, com aquela história da estagiária que matou a funcionária para garantir uma vaguinha. Em comum, nesses três crimes hediondos – um deles, o do bebê, por sorte e obra do Divino não chegou a se consumar – apenas um fator: se ultrapassa o limite da ética em nome do pragmatismo. Como em Munich, o filme, em que toda hora surge (e desaparece rapidamente) na cabeça dos matadores israelenses de aluguel o conflito, “Esse que estamos matando participou ou não do atentado de Munique?”, e em nome de receber a grana no fim do mês, manda-se bala e seja o que Deus quiser.
Matar se banalizou? Não sei, me faltam mais diplomas para usar melhor a expressão “banalizar”. Mas o fato é que cada vez mais o ato de matar parece fácil e questão de escolha, opção. E que se diga de bom tom: ética não é questão de escolha, e sim de convivência. Eu levanto do banco de cor laranja no metrô não porque escolhi assim, mas porque espero viver em um mundo nos quais o idoso seja respeitado. A ética escolhe por nós. Apenas cumprimos.
De repente, uma mãe dá o filho para moradores de rua (segundo ela), uma estagiária manda matar a superior, e, alguns anos antes, Golda Meir manda um esquadrão torrar dinheiro pela Europa matando gente que tenha Abu no nome. Foram três escolhas: a mãe optou não gastar seu pouco dinheiro com o bebê, a estagiária optou por acelerar as coisas na carreira e no caso de Munich, todos os caras optaram por continuar trabalhando naquilo. Ainda que às custas de noites de sono e amor perdidas, como se vê no filme. E é assustador, em qualquer um dos três casos (os dois da vida real e o terceiro “do cinema”, apesar de sabermos que é história real), pensarmos que o personagem simplesmente não vislumbrou outra alternativa. Cega, a mãe não pensou em um orfanato, a estagiária não calculou fazer um concurso público ou coisa assim, e os assassinos de aluguel não quiseram deixar a roda da fortuna.
São como o sujeito que, encucado, encurralado, pega um revólver e vai arrumar uma grana para comprar o leite das crianças ou mesmo um Nike Air. O futuro de repente chegou, o tiro de partida foi dado, você ficou preso no partidor e não andou. Diminuem-se as opções com o passar do tempo? Nem sempre, é claro que alguns nascem com pouquíssimas opções. Mas isto é papo sociológico.
Por enquanto, o que me intriga é esta cegueira. E pensar no que me faria ser um assassino – uma final da Libertadores entre Flamengo x qualquer outro time do Rio? Religião? Política? Fome? Dinheiro? Ciúme?
Coisas que poderiam acontecer com qualquer outro ser humano? Em resumo, posso virar um assassino facilmente – e não deveria ser assim.
Este é o ponto: saber que qualquer um pode listar o “te matar” como forma de tirar você do caminho. É algo pior do que “Deus está morto”. Na verdade é como se fosse “Deus liberou geral”.
Que Ele nos perdoe.